"Gostava do Sporting. Repare eu jogava no Sporting Farense. Era uma filial. Desde que cheguei a Portugal que gostei logo do Sporting. Estas coisas não se explicam. Aliás, eu já antes de vir conhecia bem o Sporting. Vi muitos jogos do falecido Damas. Ficou-me na memória, o tempo passou e fiquei sportinguista. Eh eh eh."
Zoran Lemajic foi um dos melhores guarda-redes que passaram por Portugal na primeira metade da década de 90. Revelou-se no Farense, onde se chegou como praticamente um desconhecido e saiu com o prémio de melhor da Liga em 1992/93. Passou pelo Boavista, chegou ao Sporting, acabou no Marítimo.
Jogou três finais da Taça, por três clubes diferentes. Conquistou uma. «Na altura era o estrangeiro que tinha jogado mais finais da Taça», conta. Ganhou uma Supertaça ao FC Porto, pelo Boavista. Construiu uma carreira digna em Portugal e ainda hoje é recordado, sobretudo por adeptos do Farense, mas também Boavista e Sporting, onde não descurou.
Em conversa com o Maisfutebol, o atual treinador de guarda-redes do Al-Ahli, do Qatar, recordou os duelos com o Benfica, que quase nunca lhe correram bem: defendeu as redes do Boavista na final da Taça perdida por 5-2 e era ele o guardião leonino no famoso 3-6 de Alvalade. Um dia em que diz ter «voltado a casa tranquilo». «Não tive problemas com os adeptos. É sinal que fiz o que pude», conta.
Ainda a saída de Alvalade com a direção de Santana Lopes que «percebia pouco de futebol» e a experiência no Marítimo onde tinha dado jeito...ser solteiro.
Os números de Lemajic em Portugal
1989/90- Farense (II Liga), sem dados
1990/91- Farense, 38 jogos
1991/92- Farense, 31 jogos
1992/93- Boavista, 23 jogos
1993/94- Sporting, 25 jogos
1994/95- Sporting, 9 jogos
1995/96- Marítimo, 27 jogos
Boa tarde Lemajic. Foram sete anos em Portugal e muitos jogos somados em vários clubes, mas já há muito que não ouvimos falar de si. O que faz por estes dias?
Sou treinador no Qatar. Já é o terceiro ano. Estão aqui alguns portugueses, como o Jesualdo Ferreira. Atualmente sou treinador de guarda-redes do Al Ahli. Finalizei a minha carreira na Escócia e fiquei sempre ligado ao futebol. Primeiro na seleção. Quando comecei ainda era Jugoslávia, depois estive na equipa técnica da Sérvia e Montenegro no Mundial da Alemanha.
Como foi essa experiência no Mundial?
Foi ótima. No apuramento tivemos um grupo muito difícil, que tinha a Espanha, e ficamos em primeiro no grupo. Depois a presença na Alemanha já não foi como esperávamos. Entramos com muitos problemas, coisas fora do futebol. Falava-se mais da separação da Sérvia e Montenegro do que de futebol.
Muita política pelo meio.
Sim, muita. Fica a memória da qualificação, foi a fase mais bonita. E estar no Mundial foi o ponto mais alto da minha carreira de treinador. Um sonho.
Lembra-se como veio parar ao Farense?
Claro. Recebi um convite de um grande empresário que tinha estado ligado ao New York Cosmos. Tinha colocado grandes jogadores da América. Houve então a hipótese de ir a Portugal e fui treinar ao Farense, que estava na II Liga. O Paco Fortes era o treinador. Gostou do que fiz e disse-me que já não ia embora.
Conhecia o Farense?
Praticamente nada. Lia sempre algumas notícias internacionais sobre o futebol português, mas do clube não conhecia nada. Foi uma surpresa ótima, por tudo. O Algarve é uma região fantástica, o Farense tinha uma massa associativa muito boa. Mesmo na II Divisão já havia um projeto forte para subir. Subimos e depois fomos à final da Taça pela primeira vez.
Contra o Estrela da Amadora.
Isso mesmo. Jogamos uma finalíssima na altura, lembra-se? Foi uma experiência muito boa. Tenho o Farense no meu coração.
Como foi trabalhar com Paco Fortes?
Ele era muito duro e muito profissional. Mas também respeitava muito os jogadores e toda a gente. Tornou-se uma figura do clube e do Algarve. Era muito boa pessoa. Era um catalão exemplar. Duro, honesto, direito. Puxava muito pelos jogadores. E depois, claro, é um treinador que tinha jogado com o Cruijff no Barcelona. Depois disso, não era preciso muito mais para ser um grande treinador.
Tinha a escola toda, como se costuma dizer.
Isso. Eh eh eh. É verdade.
Falou da final da Taça que jogou pelo Farense, depois quando mudou de clube voltou ao Jamor pelo Boavista, não foi?
Sim. Agora não sei, mas naquela altura era o estrangeiro que mais jogou finais da Taça. Ainda joguei pelo Sporting também, a única que ganhei. E também ganhei uma Supertaça pelo Boavista. Faltou-me o campeonato.
Mas a Taça era uma competição especial para si?
Não era bem isso. Era sorte, se calhar. As equipas onde jogava queriam sempre ganhar, em qualquer competição. No Farense o objetivo foi andar até onde conseguíssemos. Conseguimos muito e ficamos na história. No Boavista, que na altura era um clube muito forte, com uma direção forte, com o presidente Valentim Loureiro, com planos grandes, o objetivo era claramente ganhar a Taça. Fomos à final e ganhámos a Supertaça ao FC Porto.
A final da Taça que jogou pelo Boavista ficou marcada pela exibição do Paulo Futre.
Muito forte aquele Benfica. O Futre estava endiabrado, mas havia tantos bons jogadores...
O Lemajic não tinha, de facto, muita sorte a jogar contra o Benfica. Além desse ainda há aquele famoso 3-6 quando estava no Sporting.
Pois foi...Claro que não havia muita sorte. Mas há uma parte importante: sofri seis golos e não tive culpa em nenhum. Ainda defendi quatro ou cinco. Aliás, nesse dia fui para casa tranquilo, não tive problemas com a massa associativa. Isso é sinal que fiz um bom trabalho. Fiz o que podia. Só não tive sorte.
Podia ser qualquer um na baliza, não é?
Sim, sim. O João Pinto nunca mais marcou três golos na carreira dele. Naquele jogo marcava tudo. Podia estar lá Dassaev, Buffon, quem fosse...
Aquele jogo marcou-o?
Um pouco. Perdemos por erros individuais e qualquer coisa mais. Ainda me lembro muito bem de todos os golos. Não dá para ter pesadelos, mas é duro. Mas como profissional estamos preparados. Claro que perder com o vizinho não é nada bom, mas isto é o futebol. O Benfica também tinha perdido 7-1 com o Sporting uns anos antes. O futebol é assim, é preciso andar para a frente.
O Sporting tinha, na altura, uma equipa que era, para muitos, a mais forte em Portugal. O que falhou para não terem sido campeões?
Na altura achávamos que ninguém nos ganhava. Éramos uma família, havia uma relação muito boa entre jogadores e treinador. Depois foram pequenas coisas que fizeram a diferença. Em alguns jogos os árbitros não estiveram à altura, também. Não gosto de atirar a culpa para outros, também é verdade que fizemos alguns jogos maus, especialmente então aquele contra o Benfica. Foi quase no fim, foi um jogo que mexeu connosco. Aconteceu assim, paciência.
Houve quem se queixasse das substituições do Carlos Queiroz...
Até hoje, o Carlos Queiroz tem vindo a provar que é um bom treinador. Teve pouca sorte a treinar em Portugal. E no Sporting especialmente.
Antes do Queiroz ainda teve o Bobby Robson. Como foi a experiência?
O Bobby Robson era um senhor do futebol. Acho que naquela altura ainda não tinha percebido bem a mentalidade portuguesa. Entrou em algumas coisas que em Portugal não se aceita. Os portugueses dão valor à honestidade, falar tudo na cara...Acho que ele estava a começar a entender o futebol português, mas já não foi a tempo.
Até porque depois já teve sorte no FC Porto.
Sim e isso não é coincidência. Acho que o sucesso dele no FC Porto se deve muito ao presidente Pinto da Costa. Na altura o senhor Pinto da Costa era uma excelência do futebol, um senhor do futebol. Mandava em tudo, como se diz. O FC Porto sempre teve uma equipa muito compacta, nortenha, rija. Uma família. E com ajuda do presidente, cada treinador que lá chegava podia contar com sucesso.
E a passagem pelo Sporting pode ter ajudado a não cometer os mesmos erros.
Sim, não cometeu, de todo.
Com o Queiroz teve uma disputa mais acirrada pela titularidade com o Costinha. Como foi esse período?
Veja lá, o Costinha tinha vindo comigo do Boavista. Era um jovem com muito talento. Podeira ser um guarda-redes para o futuro do Sporting. Nunca tive qualquer problema com o Costinha ou com qualquer outro colega. Na altura também estava o Paulo Morais e depois chegou o Tiago. Nunca tivemos problemas. Foi uma questão de eu ser mais experiente e eles mais jovens. O treinador no final decidia, mas foi sempre saudável. Excelente relação.
No tempo do Boavista destaca-se, então, a conquista da Supertaça. Como foram aqueles jogos com o FC Porto?
Duas grandes batalhas. Jogos muito difíceis. Ganhámos com mérito. O Manuel José percebia muito bem a mentalidade do Boavista. Conseguiu manter uma equipa muito forte, nesse ano ganhamos três ou quatro vezes ao FC Porto.
Jogou os dérbis do Porto e de Lisboa. São muito diferentes?
A rivalidade é a mesma, mas o Benfica-Sporting é mais grandioso. É mais um Inter-Milão ou um clássico como o Barcelona-Real. No Porto era um dérbi mais da região do norte. Era igualmente duro porque o Boavista batia o pé a todas as equipas.
Alguma vez teve possibilidade de ir para outro clube onde acabou por não jogar?
Antes de ir para o Boavista, o Benfica estava interessado na minha contratação. Como o Manuel José é do Algarve conhecia bem as pessoas do Farense. Gostava de mim, via muitos jogos e chegou-se a frente. Naquele ano o jornal Record elegeu-me o melhor guarda-redes da Liga. Um dia apareceu-me o Manuel José com o presidente Loureiro às 6 da manhã, no Algarve, a dizer que o Boavista queria contratar-me. Depois disseram-me que o Sporting também tinha interesse e a verdade é que no ano seguinte foi para lá.
Na altura tinha preferência entre os chamados três grandes?
Gostava do Sporting. Repare eu jogava no Sporting Farense. Era uma filial. Desde que cheguei a Portugal que gostei logo do Sporting. Estas coisas não se explicam. Aliás, eu já antes de vir conhecia bem o Sporting. Vi muitos jogos do falecido Damas. Ficou-me na memória, o tempo passou e fiquei sportinguista. Eh eh eh.
Até hoje?
Até hoje, até hoje. Garanto.
Tem visto os jogos do Sporting? O que tem achado?
Tento acompanhar. O Sporting de hoje tem outras condições. O estádio novo é mais moderno, não é como a antiga Alvalade. Melhoraram as condições, mas o outro estádio tinha mais espírito, tinha muita coisa. Mas é a evolução das coisas. E o Sporting revela sempre grandes jogadores. O presidente Carvalho tem feito um grande trabalho na direção. Está a dirigir o clube como deve ser. Falta pouco para ganhar o campeonato. Espero que seja já este ano.
E, já agora, o que acha do Rui Patrício?
É um grande guarda-redes. Admiro-o muito. A cada ano que passa está melhor. Está ao nível dos melhores da Europa. Pode comparar-se ao Buffon. Ainda vai dar muito ao futebol português.
Voltando de novo atrás: quando sai do Sporting em 1995 para o Marítimo foi com que objetivo? Jogar mais?
A saída para o Marítimo foi a opção da nova direção do Sporting, do senhor Santana Lopes. É um homem da política que nunca percebeu muito de futebol. Provou-se no tempo. É sportinguista, mas não é a mesma coisa ser político e ser um homem do futebol. Admiro o homem, porque é sportinguista, mas depois não esqueço aquela outra parte, de não perceber muito de futebol. Entendi que a direção não estava a respeitar jogadores que deram muito ao Sporting e decidi sair, sem mágoa, para o Marítimo, que me chamou.
Foi uma boa experiência?
Para mim foi muito diferente. Foi a primeira vez que fui para as ilhas. Foi um pouco duro. Era um homem de família. Precisava de mudar tudo, tanta coisa. Se fosse solteiro era mais fácil. Eh eh eh. A nível desportivo foi bom, fiz um bom trabalho no Marítimo.
Gostava que o Sporting tivesse feito mais força para ficar consigo?
Claro que um sportinguista como eu gosta de estar na casa própria. Mas as pessoas que entraram no Sporting pensaram que era preciso tudo novo. Não tinham conhecimento como as coisas funcionavam verdadeiramente. Achavam que mudar tudo ia resultar, mas não foi assim. Acho bem que se queira meter jogadores novos, mas também não há garantias que vai correr tudo bem e ser campeão no final. Perceberam rapidamente que foi um erro. O Sporting pagou isso.
Para terminar, quem foram os melhores jogadores com quem jogou ao longo da sua carreira?
Ui, tantos...Só no Sporting: Balakov, o jovem Figo, Paulo Sousa. Tantos. Vi nascer o Figo, via-se todo aquele talento a aparecer. Ele, o Peixe, Capucho. Muitos jovens. Tenho uma especial admiração pelo Figo porque sempre foi um rapaz que sabia para onde ia. Sempre foi honesto.
A entrevista é de João Tiago Figueiredo, publicada no Mais Futebol (link original)
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