Os ídolos nunca saem de cena – Entrevista a João Benedito
João Benedito foi o primeiro entrevistado do Bola na Rede, já em 2011. Neste dia em que celebramos o nosso sexto aniversário voltamos a estar à conversa com o agora ex-guarda-redes de Futsal.
Bola na Rede (BnR): A primeira entrevista foi há quase cinco anos. O que mudou no Futsal em Portugal nestes cinco anos?
João Benedito (JB): O mediatismo constante, a qualidade de jogo, tudo o que está relacionado com aquilo que é o jogo em si e o culto ao atleta. Penso que isso tem alterado bastante.
BnR: Há cinco anos dizias que faltava pouco para o Sporting conquistar a UEFA Futsal Cup, mas tal ainda não aconteceu. O que falta ou tem faltado para isto acontecer?
JB: Sinceramente são fases de carreira que já passaram e se as coisas não aconteceram é porque talvez não tivessem de acontecer ainda. Mas eu tenho estas duas vertentes; não festejei como jogador, mas ainda estou muito a tempo de festejar enquanto adepto.
BnR: Não teres conquistado este troféu, que era um sonho, é colmatado pelo resto da tua carreira?
JB: A minha carreira desportiva já terminou, já pus um ponto final em relação a isto; são coisas que já aconteceram.
BnR: Achas que o novo pavilhão vai ser um fator motivacional para os jogadores?
JB: As equipas que têm a sua casa têm sempre vantagem competitiva direta, porque treinam lá, porque têm os seus adeptos, e como é lógico o esforço que está a ser feito pelo Sporting para ter o pavilhão num curto espaço de tempo vai trazer frutos a nível desportivo.
BnR: Há cinco anos fizeste uma crítica ao planeamento dos espaços desportivos em Portugal. Sentes que mudou alguma coisa neste intervalo?
JB: Penso que cada vez mais vemos novos espaços desportivos, e a própria organização estatal tem estado alerta para melhorar os seus serviços e aumentar os espaços desportivos; existem cada vez mais. Há trabalho a ser feito mas também existe trabalho bem feito.
BnR: Dizias também que existia falta de amor próprio ao desportista português e ao desporto em Portugal. Continua ou tem mudado ao longo dos tempos?
JB: Tem mudado ao longo dos tempos, mas não tanto como seria de esperar, e prova disto têm sido as grandes competições internacionais. Demos aqui um abanão com a conquista do campeonato europeu de futebol, que provou também ser possível. O atleta português é um atleta bom, que trabalha, que se prepara, e como tal este atleta, para ser dedicado, tem de ter este amor próprio, para poder ter autoconfiança suficiente para estar bem nos grandes eventos.
BnR: Pegando nos três principais jornais desportivos, a seleção feminina de futebol conseguiu o apuramento inédito para o europeu mas apenas um dos jornais deu o destaque principal a este assunto. O que é preciso fazer por parte das modalidades ou do futebol feminino para que isto mude?
JB: Temos de criar aqui dois patamares de análise. O primeiro, o positivo, é que já existe um jornal desportivo a dar este destaque. Estamos a falar neste caso de órgãos privados e autónomos; eles colocam o que entenderem. Quando existirem os tais blackouts, não devem ficar indignados com tal, porque são tão autónomos numa situação como são autónomos na outra. Não são, ou não deviam ser, órgãos políticos.
Depois, é um dia marcante, mas temos também de perceber que é um apuramento e não um título. É um trabalho que tem sido fantástico, e aqui da FPF em qualquer uma das vertentes do futebol e modalidades. O futebol de praia, o futsal, o futebol feminino, o futebol de formação e o futebol têm estado com um planeamento que têm posto em prática, e os resultados são prova disto. Os sub-21 que foram à final com o Rui Jorge, os seniores que ganham, o feminino que se apura, Portugal que foi a uma meia-final no futsal, o futebol de praia que é campeão do mundo, o futebol de formação que continua a dar cartas. Existe aqui um grande trabalho por toda a estrutura da FPF e, como é lógico, há que dar os parabéns à seleção feminina de futebol; mas não entrem em euforia, porque o caminho não termina aqui. Às vezes a euforia é um fim de linha e não dá continuidade ao trabalho que está a ser realizado.
BnR: Continuas a sentir o carinho quer dos adeptos do Sporting quer de outras equipas?
JB: São duas coisas muito boas que eu guardo da minha carreira desportiva. Em primeiro lugar, a forma como os adeptos do Sporting me tratam constantemente. E depois há também que perceber que a minha estadia no desporto, a nível competitivo, foi feita de forma transversal; que as pessoas, pelos princípios que empreguei, acho que não pode ser dissociado disto, e as conclusões têm sempre de ser tiradas por parte deste fator indicativo, acho que tive sempre uma postura correta e por vezes os atletas não têm esta postura correta devido à pressão de estar em campo, de ter de ganhar ou ser provocado. Eu, felizmente, tive a sorte de nunca passar das marcas e acho que isto foi transformado pelas pessoas por este carinho que me dão e é bom ver que para além dos clubes, e como deveria ser em tudo no nosso país, o trabalho das pessoas é que é valorizado.
BnR: Agora no jogo com o Dortmund as claques apresentaram um tifo em que estavas lá ao lado de algumas das maiores figuras do Sporting. Há cinco anos atrás disseste: “Nem quero saber como é ganhar por outro clube”. Depois de acabares a carreira sentes que és mesmo uma referência do clube?
JB: Sim, é lógico que o clube são os seus sócios, os seus adeptos e quando há algo assim tão grandioso e poder estar em algo assim ao lado de alguns atletas que foram as tuas referências durante a infância e que nunca pensei poder, aos olhos de alguém, estar no mesmo patamar ou aparecer ligado a estas figuras. Eu lembro-me de ter conhecido o Damas pouco antes de ele falecer e ter sido dos momentos mais felizes da minha vida, neste dia em que fui a um núcleo com ele e que pude falar, em que pude privar com ele, uma pessoa que era uma referência para mim. Estar neste painel ao lado de pessoas que são uma referência do clube é indescritível, dá aquele prazer das conquistas, aquele prazer interior, não das palavras para fora, mas que preenche a pessoa. Não é preciso estar aqui a falar, aqui a berrar que fui bom ou que mereço isto ou aquilo, mas ver isto dá-me claramente o sentido de dever cumprido e a ideia de que ainda tenho mais a fazer neste clube.
BnR: Além de Vítor Damas tens mais algum ídolo?
JB: Eu nunca tive ídolos em quem me tentasse espelhar; tentava sempre recorrer ao que cada um fazia e tirar o melhor de cada um. Identificar características boas, características menos boas, coisas para fazer, coisas para não fazer… E nunca tive ninguém em quem me espelhasse; as minhas referências foram sempre referências do Sporting. Eu lembro-me de que, quando era pequenino, gostava do Joaquim Agostinho, adorava o Pedro Miguel Moura, o Vítor Damas, adorava aquelas pessoas no Sporting que ganhavam, porque era isto que me fazia manter a chama acesa. Porque, quer se queira, quer não se queira, o que liga os jovens aos clubes são sem dúvida as suas referências. Não há diretores, não há treinadores, não há pessoas que andem por fora na estrutura que possam servir de referência tão bem como os jogadores que estão dentro de campo. E eu estou à vontade para o dizer porque nunca vou estar novamente neste patamar; porque já o vivi dentro de campo, e estas são as referências, quando queremos cultivar um clube e queremos que as pessoas se identifiquem com este clube, principalmente os mais jovens que são o futuro, temos de dar palavra, protagonismo aos atletas. E estes sim é que vão trazer as pessoas e depois o resto do trabalho que é feito por trás; não tirando o mérito a ninguém, é um trabalho que também tem de ser valorizado, mas eu digo-o porque vivi e estas pessoas que referi eram pessoas que se calhar podiam ter pouca dimensão a nível mediático, mas com quem eu me identificava porque me faziam viver o clube.
BnR: Fazem então falta mais jogadores-ídolo? Hoje em dia é mais difícil um jogador fazer a carreira num único clube?
JB: Não, não sei se é fácil, se é difícil. É como estar dentro de campo e haver aquelas pessoas que se vangloriam por nunca estarem em confusões, por nunca terem passado das marcas. Isto é como na vida; estas pessoas têm é de ser testadas na realidade. Antigamente, quando havia propostas financeiras muito atrativas, as pessoas não eram egoístas por pensar em si e na sua família. Hoje em dia se calhar nós temos atletas que fazem anos seguidos nos grandes clubes europeus. Tem de existir cada vez mais, se queremos que os atletas façam cada vez mais anos seguidos nos mesmos clubes, a valorização financeira e social, ou até envolvê-los nas decisões do clube q.b e não deixá-los sair e ir buscar jogadores com as mesmas características ou inferiores e aí sim já lhes dar o que estes atletas pediam para ficar. Aqui isto reside sempre nas contigências da própria vida da pessoa enquanto está a ser assediada para estar num lado ou estar noutro. Não é fácil uma pessoa ter uma carreira sempre no mesmo lado. Nem sempre escolhemos bem, depende se estão pressionadas, se não estão pressionadas, depende de muitas coisas. Chega a uma altura da vida em que não se decide tudo por ser tudo bom ou tudo mau; os pratos da balança pesam e vamos deixar para trás coisas boas mas vamos encontrar coisas tão boas ou ainda melhores do outro lado da balança.
BnR: Voltando ao futsal, o João Matos sucedeu-te como capitão do Sporting CP. Achas que foi uma boa escolha, que foi a pessoa indicada?
JB: Eu fiz um compromisso de honra comigo próprio, porque acho que as pessoas são eternamente responsáveis por aquilo que cativam. E, se eu cativei a massa associativa e os adeptos do Sporting, devo-lhes muito, muito respeito, e o clube ainda mais. Como tal, neste momento sou adepto do clube, comento as questões desportivas, se a bola entra ou não entra. Quanto a comentar-se questões estruturais, acho que se deve fazê-lo em sede própria e não tentar alavancar as coisas. Porque podem dizer-se palavras que são retiradas do contexto e que, às vezes, podem indiciar um bocadinho aquilo que é o oportunismo jornalístico. Eu comento se a bola entra, e fico contente quando ela entra e o Sporting ganha. Tudo o que for estrutural deve ficar para outras pessoas analisarem, ainda que, quando me tornaram capitão do Sporting, eu tenha dito: Quando deixar de ser capitão do Sporting, o meu trabalho será bem ou mal feito consoante o número de títulos que conquiste. E acho que, aqui, na diferença entre perder ou ganhar no último minuto, se vêem os espíritos de grupo e de união, e é lógico que as pessoas têm de ser avaliadas só no fim, e não se deve tentar dizer que A, B ou C é bom quando tem ainda um longo caminho pela frente.
BnR: Recentemente terminou o Mundial de Futsal. O que achaste desta participação na Colômbia e, em especial, da participação do Bebé na baliza?
JB: Somos a quarta melhor seleção do mundo. Pode ter ficado um amargo de boca porque vemos a Argentina ser campeã do mundo e pensamos: será que Portugal também não poderia ter sido? Podia, mas a Argentina também tem uma excelente seleção, e estes jogos decidem-se no pormenor. Acho que devemos estar todos bastante contentes com o trabalho da nossa seleção, da equipa técnica, dos diretores. Tudo aquilo que está a ser feito está a dar os seus frutos e já melhorámos em relação ao mundial anterior e a outras prestações de outros mundiais em 2004 ou em 2008. Não melhorámos o terceiro lugar que foi obtido na Guatemala, mas a base está lançada para, no futuro, podermos, em termos europeus ou até mundiais, conseguir o troféu que Portugal tanto persegue. Quanto à prestação dos nossos atletas, tiveram todos uma prestação muito boa. Penso que estamos a desvalorizar o trabalho de todos os outros elementos se destacarmos apenas o Bebé, ou o Ricardo ou o Cardinal. Sejam quem forem essas referências, penso que este quarto lugar vale por aquele espírito coletivo que Portugal tem, e acho que muito trabalho foi feito, e muito bem feito.
BnR: De todos os treinadores que tiveste, consegues apontar um que te tenha marcado mais?
JB: Aprendi com cada um, a falar com cada um. Temos de perceber, como disse há pouco em relação aos ídolos, que uns têm umas características e outros têm outras. Como é lógico, agradeço a todos eles pelos ensinamentos que me deram, quando eu era mais jovem, e àqueles que, já nesta fase terminal da minha carreira, falaram comigo e sempre me explicaram as suas opções. Um bom treinador é aquele que vem falar contigo, que não se preocupa com o frango que dás ou com a bola que entra. É aquele que vem e pergunta de manhã se está tudo bem, que perde um bocadinho de tempo a ir almoçar contigo, para falar contigo e perceber que, se estás a cair, vai lá levantar-te, seja com uma conversa, seja com dois dedos de atenção. Em relação aos meus treinadores, todos eles tiveram características boas e características más. Também eu, como atleta, me portei bem e me portei mal com cada um deles.
BnR: Na entrevista de há cinco atrás, um dos momentos que nos cativou foi quando disseste que foste ver um jogo a Alvalade e viste o Rui Patrício ser assobiado. A primeira coisa que fizeste foi pedir o número dele para falares com ele. Agora o Rui foi nomeado para a Bola de Ouro, algo que não acontecia a um jogador da liga portuguesa há nove anos, ainda por cima sendo guarda-redes. Tu, como sportinguista que és, e tendo assistido ao crescimento do Rui, sendo também tu um guarda-redes e uma figura do Sporting, qual o sentimento que tens ao ver o Rui nomeado para os trinta melhores jogadores do mundo?
JB: O facto de um guarda-redes estar nos trinta melhores jogadores de futebol do mundo é já uma grande vitória. É difícil, como é lógico, ver um guarda-redes a conquistar esse prémio. Mas acho que a base de todo este sucesso e este orgulho que nós, hoje em dia, temos na referência que está na baliza do Sporting se deve a um percurso não de raivas mas sim de trabalho, porque ser assobiado em casa, seja para o atleta, para a equipa, o treinador ou o diretor, é algo semelhante a chegares a casa depois do trabalho e a tua mulher, ou a tua família, não te dar aquele apoio de que tu necessitas. Não acredito que alguém dentro do campo faça de propósito para errar ou não dê o máximo, ou não queira agradar aos adeptos. Há casos individuais, mas aquelas ovelhas negras tem sempre tendência para sair do rebanho. E, aí, há alguém que os tira ou os põe no sítio. Acho que este percurso do Rui Patrício não foi baseado nessa raiva do assobio, do “Toma lá, estão a ver como consegui?”. O Rui focou-se no trabalho e faz muito bem; tenho muito orgulho em que esteja ali uma pessoa na equipa do Sporting que possa ser uma referência, quer em termos desportivos como em termos sociais, a abdicar de outras propostas que tenha para poder sair. Ele abdica mas também se nota o esforço do clube para o manter, e acho que o Rui Patrício continua no Sporting por vontade dele.
BnR: Tu também trabalhaste com muitos jovens. Atualmente o Sporting tem o Marcão, mas depois tem também o Gonçalo Portugal. Vês o Gonçalo como alguém com potencial para assumir no futuro a baliza do Sporting e da seleção?
JB: Não sei, não tenho atestado a evolução, não sei quais os planos do clube para o atleta. Acho que existem muitos bons valores para a posição de guarda-redes em Portugal, dada a competitividade. Para além dos jogos normais, a qualidade de qualquer atleta tem de ser avaliada nas decisões, quando estão sob pressão, e aí ha que perceber se são efetivamente bons, se têm um interior e uma forma de estar ganhadores. Tudo o resto é estar a tentar prever coisas que são imprevisíveis.
BnR: Quem para ti é o melhor jogador do campeonato português, e também do Mundo?
JB: Assim como eu disse para a parte dos ídolos, há sempre jogadores muito bons para várias posições. Há pessoas que eu gostei muito de ver jogar, pessoas que me dizem bastante. Estar a falar de alguém que esteja ainda no ativo é um bocadinho redutor para as pessoas que eu conheço e depois, se calhar, ainda se chateiam comigo os outros todos (risos). Mas posso destacar, em termos de jogadores que já deixaram de jogar, que gostei muito de jogar com o Pedro Costa. Havia um pivô na Ucrânia, que era o Koridze, que era um goleador nato, que me marcava golos de todo o lado, de todas as maneiras e feitios. Prefiro ver o que está para trás. Nós estamos num patamar em que a necessidade de encontrar o melhor, o Deus, o atleta, o número 1, tolda-nos o raciocínio e cega-nos em relação a percebermos que, se calhar, dois números 2 juntos são melhores que um número 1. É assim que se começa a fazer as equipas. Esta cultura que está enraizada hoje em dia, de ter o melhor, incapacita-nos em relação a ver outras promessas, outros atletas que sejam tão bons. Ponham o Ronaldo e o Messi, e coloquem-nos numa equipa de terceira divisão, e eles não vão ganhar a Champions, não vão ter o protagonismo que têm. Tem de haver referências? Claro que sim, como o exemplo do Rui Patrício. Para um jogador marcar golos, tem de haver outros que lhe passem a bola, que a recuperem e não a deixem entrar na baliza. Se as orquestras fossem só de um violino, não eram tão requisitadas. Acho que, aqui, nós temos de ver que existem outras pessoas que são igualmente boas. Estávamos a falar de Messi e Ronaldo, mas depois aparece o Griezmann a jogar de forma fantástica, aquela equipa do Atlético Madrid, que são só trabalhadores. A Alemanha, sem Messi, sem Ronaldo e sem Neymar, é campeã do Mundo. Hoje, o atleta é algo que pode ser cultivado e trabalhado, mesmo não tendo aquela técnica que antigamente se preconizava.
BnR: Para finalizar, uma última pergunta mais a nível de brincadeira. Na entrevista anterior, disseste que, quando acabasses a carreira, querias fazer férias na neve e desportos radicais. Já concretizaste isto?
JB: Confesso que já tinha feito algumas férias, mas curtas, de poucos dias, só para ir ver a neve. Agora vou iniciar-me nesses desportos radicais e todas essas coisas que não têm a pressão competitiva, que eu sei que me vai fazer falta daqui a uns tempos. Agora o momento é para relaxar e tentar encarar aquilo que aí vem.
Fonte: Bola na Rede (original, aqui)
Aproveitem também para espreitar a entrevista a Patrícia Mamona, também no Bola na Rede (link)