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Grande Artista e Goleador

Aurélio Pereira: 'Se passar por um bando de miúdos a jogar, paro logo o carro'

Ex-treinador de todos os escalões da formação leonina, Aurélio Pereira anda há mais de duas décadas a descobrir talentos em nome do Sporting. Encontrou Futre, Figo, Ronaldo, Nani e muitos outros, alguns deles roubados aos principais rivais. Apreciador de western e de fado, fã da sobrinha Rita Redshoes e grande contador de anedotas, Aurélio Pereira explica o sucesso e revela os segredos.

Ao fim de 43 anos de ligação à formação do Sporting - 24 deles passados na prospeção -, qual é o maior elogio que podem fazer-lhe?

_Ser-me reconhecida a paixão pelo Sporting e pela formação.

Recentemente, foi homenageado pelo Sporting e o relvado principal do centro de estágio passou a ter o seu nome. Contas saldadas com o clube?

_Não estava à espera de tal homenagem e não sei como agradecer ao Sporting. Mas mais do que eu, a formação, pelo trabalho feito ao longo dos anos, merecia. É um grande património do clube.

E qual é o principal segredo de um caçador de talentos, de um olheiro?

_Primeiro, é importante conhecer bem os escalões etários. Um verdadeiro observador, quando entra num campo de futebol, sabe identificar imediatamente a que escalão pertencem os miúdos. Depois, a paixão - ainda hoje sou incapaz de passar por um bando de miúdos a jogar sem parar o carro para ficar a ver.

O que é importante ver em primeiro lugar?

_A habilidade natural é a primeira qualidade que se pode observar mas a velocidade de execução, de deslocamento, são fatores determinantes. Uma criança pode ter uma habilidade natural fantástica, mas sem a velocidade (de deslocamento, execução e reação), não há talento que resista.

Neste caso, como define talento?

_A habilidade natural, isto é, aquilo que nasce com o miúdo mas não só. O talento é também não ter medo de perder a bola, de errar. Esse é o verdadeiro talento.

Vai muitas vezes contra a corrente, apostando no miúdo menos provável. O que é que vê que outros não veem?

_Em regra olha-se para o rendimento atual da criança. Eu prefiro avaliar as potencialidades. Imaginemos dois miúdos de 10 anos; um nasce em Dezembro e outro em Janeiro. Sendo da mesma idade, um tem praticamente mais um ano do que o outro. Ou seja, não podemos ficar-nos pelo rendimento atual. Saber o mês de nascimento dos miúdos é fundamental.

Qual é o primeiro conselho que dá aos seus colaboradores?

_Há uma regra que implementei desde o início - nenhuma criança deve ser excluída à partida. Alto, magro, baixo, franzino ou gordo, todos devem ser analisados, vendo para lá dessas caraterísticas.

Foi assim que apanhou Miguel Veloso, um miúdo que o Benfica rejeitou por ser gordo.

_Por exemplo. Ora quem é gordito pode sempre emagrecer. E quando eu olhei para o Miguel pela primeira vez vi-o fazer coisas especiais - o posicionamento, a forma como se enquadrava utilizando já os apoios (provavelmente alguns ensinamentos do pai, António Veloso), a forma como colocava a bola à distância, a capacidade de antecipação. No dia seguinte chamei-os, ao pai e ao filho, e fiz-lhes o desafio. Foi um caso curioso porque no dia seguinte a mãe ligou-me e perguntou: «Vai levar o miúdo para aí para depois ser dispensado para o ano?». Disse-lhe que a nossa convicção era a de que ele ficaria. Tenho muito respeito por um jovem, faz-me muita confusão criar falsas expetativas.

Como desengana um miúdo que acredita que vai ser um Figo ou um Cristiano?

_Com muita paciência e dando tempo ao tempo. Com o tempo ele próprio perceberá.

Disse numa entrevista que no Sporting só entram dois tipos de miúdos - os talentosos e os bons jogadores. E em que fase avaliam a capacidade de trabalho, de dedicação e de sofrimento?

_Na hora: um talento, para o provar, tem de ter três coisas: paixão pelo treino, pelo jogo e pela profissão.

Um bom jogador pode chegar a grande jogador?

_Pode, se tiver também esses três fatores. Já um grande jogador nunca chegará a talento.

Mas o miúdo talentoso pode nunca chegar a ser um grande jogador, ou não?

_Exatamente, se lhe faltarem os mesmos três fatores.

Dani e Quaresma, dois talentosos, estão nesse grupo?

_O Dani ainda há bem pouco tempo fez uma palestra na Academia do Sporting. E quando mostrámos um vídeo com algumas das suas jogadas os nossos jovens ficaram boquiabertos. Ele tinha um talento fabuloso. Que jogador com 17 ou 18 anos entra no Ajax, joga e faz golos na Liga dos Campeões Europeus? Está tudo dito. Acontece que naquela altura não achava que na sua idade os sacrifícios fossem necessários nem estava vocacionado para os fazer. Acabou a carreira muito cedo, com muita pena minha. Tenho por ele o maior carinho e respeito, até porque é um miúdo fantástico. Os pais eram do melhor. Não lhe faltava nada.

Por outros motivos - e vindo de outro meio social - o Quaresma também ficou abaixo das expetativas. Porquê?

_Penso que tudo teria sido diferente se ele tivesse tido a sorte de ir com o Cristiano Ronaldo para o Manchester, um clube com capacidade para dar sequência a um trabalho de formação. Quando o Quaresma foi para o Barcelona, o clube estava numa outra fase, precisava de resultados na hora. As pessoas não imaginam como é importante para um jovem dar-lhe tempo e espaço de crescimento. Do ponto de vista humano podemos dizer que no Sporting somos catedráticos. O Quaresma não teve isso no Barcelona. A passagem para o Inter também o marcou. Ele tinha feito uma época fantástica no FC Porto, a transferência nunca mais se consumava, ainda por cima para um futebol muito defensivo.

Recorda-se da primeira vez que lhe falaram dele?

_Muito bem. Tive uma informação muito positiva de um atleta chamado Alfredo Quaresma e mandei o nosso observador ver esse miúdo num jogo Carcavelos-Domingos Sávio. O nosso olheiro gostou do que viu e combinou um encontro com a mãe. Enquanto esperava que o Alfredo saísse dos balneários, reparou num miudito de 7 anos, muito bom. Depois de saber que era irmão do Alfredo, telefonou-me. «Traz já os dois», disse-lhe. E assim ficámos com o Alfredo e o Ricardo.

O Dani foi descoberto por mero acaso.

_Completamente. Estava de férias com a família, em Troia quando vejo um puto num jardim a fazer de uma bola o que queria. A bola até se encolhia. Fui logo falar com ele.

Em que termos é feita essa primeira abordagem?

_Perguntei-lhe o nome e pedi-lhe que fosse chamar o pai. Ainda há dias encontrei um miúdo na Quinta das Conchas, assim, desta forma. Tenho a felicidade de, de cada vez que abordo um pai, ter um bom acolhimento.

Quando se identifica, os pais devem ficar até com os olhos a brilhar, não?

_Sinto um carinho muito especial que decorre da nossa credibilidade. Somos a primeira cara que lhes aparece em representação de uma estrutura que assume a responsabilidade de ter em casa cinquenta miúdos e de os encaminhar. Porque nós vamos desafiar uma criança para, provavelmente, lhe inverter o percurso de vida.

Já leva no currículo dois jogadores considerados os melhores do mundo, Figo e Ronaldo. E Futre esteve muito perto de consegui-lo. Qual é o melhor presente que estes jogadores, mais tarde, lhe podem dar?

_O maior retorno seria vê-los a jogar no Sporting. Gostava muito que eles tivessem princípio, meio e fim no meu clube. Mas o Sporting, ou o Benfica e ou o FC Porto não são destinos. São passagens. O Barcelona é um destino, é um clube que pode dar-se a esse luxo.

O Barcelona é o topo para um profissional da formação?

_Sim. É o Barcelona. Há um conceito onde as coisas têm princípio, meio e fim.

Como está montada a rede do Sporting?

_Atualmente, a informação é tão célere que não há possibilidade de esconder um miúdo. Todos os grandes clubes que apostam na formação fazem o mesmo trabalho de pesquisa. E, muitas vezes, chegar primeiro não chega. É o período da negociação que interessa, quando o pai já tem o convite dos três grandes. Por vezes, tiramos partido da guerra FC Porto-Benfica, confesso. Mas o mais importante passa pelos recursos humanos. O clube que não tiver no departamentos de recrutamento pessoas disponíveis 24 horas por dia está condenado ao fracasso. O Sporting tem.

E quantos são os olheiros espalhados pelo país?

_Cerca de 150. Mas não me interessa muito a quantidade se não houver paixão e disponibilidade para estarem em rede permanentemente.

Os olheiros têm uma avença, um ordenado?

_Nada. Só recebem ajudas de custo.

E como se processa o recrutamento?

_O processo de recrutamento começa nos 7 anos. Durante seis anos vamos seguindo os miúdos. Treinam nas nossas academias, os de fora vêm jogar aos fins de semana. A decisão de entrar na Academia é tomada dos 12 para os 13 e quando chegamos a essa fase de amadurecimento, o Sporting já conhece a família e o atleta por dentro e por fora, até clinicamente.

É a fase da grande decisão. Como é que convence um miúdo benfiquista, requisitado igualmente pelo Benfica, a escolher o Sporting, por exemplo.

_Não vou citar nomes mas já aconteceu com muitos. O meu argumento é sempre o mesmo: a garantia de que vindo para o Sporting o miúdo tem salvaguardado um conjunto de fatores decisivos para a sua vida. Treinar toda a gente sabe e também não lhes digo que temos as melhores instalações. Garanto-lhes, sim, que sob o ponto de vista humano ninguém tem a experiência do Sporting.

As paredes do seu gabinete com as fotos do Figo, do Ronaldo, do Moutinho, do Futre, do Nani, fazem meio caminho?

_Não podemos ocultar o nosso trabalho. O clube é uma referência de formação em todo o mundo exatamente porque formou esses jogadores.

E alerta os pais e os miúdos para a impossibilidade de todos poderem chegar a vedetas do futebol mundial?

_Falo sempre a verdade. Nunca garanto a um miúdo que ele vai ser um jogador de primeira equipa. O que lhe prometo é que vai sair dali melhor jogador, melhor atleta, e mais - que se tiver de regressar a casa, não irá, em termos escolares, descalço. Aliás, miúdos que eram alunos de cinco, continuam a ter as mesmas notas na Academia. O pai do Postiga, quando recrutámos o filho mais novo, o José Postiga (atualmente titular da seleção sub-17), disse-me isto: «O José é aluno de cinco. No dia em que ele não for aqui aluno de cinco regressa a casa.» E ele manteve as notas e pertence hoje ao quadro de honra da Academia.

Nesse processo, o pai e a mãe comportam-se da mesma maneira?

_Quem verdadeiramente decide é a mãe. Se a mãe não estiver do nosso lado, nada feito.

Como é que se conquistam as mães?

_Quem anda com os filhos para a frente são as mães. Por vezes, quando se trata de filhos de pais separados, o pai só aparece quando vê que o filho vai jogar para o Sporting, mas a mãe está lá sempre. A minha preocupação não é que os pais assinem papéis mas que saiam dali, mesmo que não assinem nada, com a certeza de que a instituição sabe o que está a fazer.

A criança ou os pais recebem dinheiro?

_Nada. E se um jogador for para ali discutir comigo problemas financeiros, a minha resposta é que vá para o Benfica ou para o FC Porto. Até por isto: os pais sabem que não há dinheiro que pague aquilo que damos aos filhos.

Quanto custa, em média, um desses miúdos à Academia?

_Não disponho dessa informação mas existe um orçamento e somos dos clubes que mais investe em formação.

Qual é o valor orçamentado para a prospeção?

_Não sei.

Nunca lhe fizeram um pedido especial ou tentaram uma cunha?

_Um ou outro pai pode tentar interferir, mas o Sporting está blindado. Não há um atleta que não tenha relatórios dos observadores, dos técnicos. Somos certificados e auditados e quando chega o momento da auditoria têm de constar no processo todos os elementos que justificam a entrada do jogador no Sporting. O processo passa pelas seguintes fases: informação, deteção, seleção e, depois, contratação. O departamento deteta e a área técnica seleciona. O recrutamento, em determinadas circunstâncias, pode decidir mas sempre em sintonia com a estrutura técnica. Eu gosto de analisar sempre o atleta para, na conversa com os pais, não correr o risco de criar falsas expetativas.

Diga-me um jogador que tenha escapado à sua malha?

_Sinceramente, não estou a ver um jogador que tivéssemos discutido e que ele tivesse optado por um rival.

O Nélson Oliveira para o Benfica?

_O Nélson. Sim, realmente ele esteve na nossa Academia. Eram benfiquistas convictos, não os podemos ter todos. É normal que um atleta escolha o clube da sua preferência.

Saíram do Sporting muitos e dos melhores extremos do mundo. A que se deve essa tendência?

_No Sporting não formamos equipas mas jogadores. Não responsabilizamos os miúdos, não gritamos, deixamos que eles tenham capacidade para criar. Eu que treinei o jogador que mais amava a bola, o Paulo Futre, fui muitas vezes atormentado de fora porque permitia que aquele miúdo não passasse a bola a ninguém. No Sporting esses jogadores de talento e de qualidade técnica são criados nas zonas interiores do campo para que possa tocar na bola cem vezes em vez de dez e sejam capazes de resolver as coisas em espaços reduzidos. Ora, qualquer treinador que visse um Nani, um Figo, um Ronaldo, um Simão, os colocaria nas faixas laterais. Mas não foram criados como extremos, sim no centro do jogo.

Não era fácil obrigar o Futre a passar a bola, ainda que quisesse.

_Atenção, eu castiguei o Futre, mesmo sofrendo com isso. Certa vez, porque ele faltou a um treino e um dos meus mandamentos era claro - quem faltar a um treino sem dar explicações não joga. Foi em vésperas de Sporting-Benfica, eu levei-o para a minha cabina e expliquei-lhe porque é que não podia jogar. Ele chorou e chorou. Deixei-o chorar. No fim disse-lhe: «Se tu fosses o treinador, o que fazias?». Ele deu-me razão, retratou-se perante os colegas.

O Futre foi a sua primeira grande descoberta, ainda treinador, em meados dos anos 1970. Antes, tinha sido jogador de futebol e treinador de todos os escalões da formação. Como é que chegou à prospeção?

_Em 1987, soube no decurso do campeonato de que ia ser substituído como treinador. Na altura, propus abrir um departamento de prospeção. Quando fui treinar ao Sporting aos 14 anos, de centenas de crianças apenas escolheram cinco (eu fui uma delas) com base num único critério, a altura. Aquilo marcou-me, ficara-me na cabeça e eu queria mudar alguma coisa. Primeira regra - ver todas as crianças. Mas selecionar em tão pouco tempo obrigava-nos a ter uma enorme atenção. Cheguei a tirar férias do meu emprego para ver esses miúdos num processo que era muito cansativo para nós e para as crianças. Os jogadores nem algarismos tinham. Por isso, revoltei-me e disse que só aceitava o lugar se acabassem com os treinos de captação. O Sporting deveria ir ao encontro dos miúdos e não o contrário e a direção aceitou.

Estava-se em 1988. Antes da sua chegada à prospeção, o Benfica e o FC Porto levavam um avanço?

_O Benfica tinha poder económico e qualquer jogador que aparecesse acabava lá. Os dirigentes benfiquistas chegavam a um clube, perguntavam quanto queriam por tal jovem e pagavam. O Sporting não tinha essa capacidade financeira. Quando iniciei esse departamento, arranjei, primeiro, uma equipa espetacular dedicada à região de Setúbal e Lisboa; segundo, pedi na secretaria as moradas de todos os sócios à exceção de Lisboa e, como trabalhava numa gráfica, fiz uma circular em que lhes pedia que nos ajudassem a encontrar uma estrela. Seguiu também uma ficha de inscrição e passados uns dez dias ligaram-me a dizer que estavam inundados de pedidos de adesão. Depois, selecionámos as pessoas por distrito e atividade. Havia de tudo, treinadores, árbitros, até médicos e advogados. Criámos uma rede de vinte pessoas por distrito que nos garantia informação que os outros não tinham. Fomos o primeiro clube a criar uma base de dados de observadores que nos permitiu começar a liderar o recrutamento de jovens em todo o país. A minha homenagem às pessoas que iniciaram comigo essa tarefa gigantesca.

Nessa altura, como é que era a vida dos miúdos que viviam no Sporting?

_Jogavam e estudavam. Tinham muito apoio da nossa parte.

Ao contrário de hoje, a maioria deixava de estudar muito cedo.

_Alguns, sim, se bem que o Sporting sempre se preocupou com esse aspeto, não é de agora. Nesse tempo, tínhamos um minicentro de estágio dentro do estádio e as coisas estavam controladas até porque havia uma escola ali perto. Não tínhamos as condições de uma academia, mas do ponto de vista do acompanhamento, essa preocupação já existia. Nessa altura, no entanto, só recebíamos miúdos a partir dos 14, 15 anos. A primeira vez que abrimos uma exceção foi para um miúdo de 11 - o Cristiano Ronaldo. Não estávamos preparados mas não podíamos deixá-lo fugir.

O Cristiano obrigou o Sporting a abrir uma exceção e os cordões à bolsa....

_Sim. Quando avaliámos o Ronaldo (na altura era o responsável por todo o futebol juvenil) percebemos logo que havia ali um talento fora do vulgar. Daí ter-se assumido pagar aquela verba, que era impensável - 25 mil euros. Nunca se tinha pago tanto por um miúdo. Mas assumimos isso depois de uma análise em conjunto, lá está, conscientes de que estávamos a ver um miúdo com 11 anos, com um talento enorme e uma personalidade muito especial. Estamos a falar de um jovem que nunca se escondia, que assumia o jogo, o erro, repetia a jogada e voltava a fazer sem medo. Rapidamente os outros miúdos perceberam que ele era o líder. Mesmo quando o treinador estava a falar no meio do campo e a conversar com os jogadores, o Ronaldo estava sempre com a bola de trás para a frente. O Futre era igual. Aliás, nos dias de hoje, Futre não teria preço.

Ronaldo teve uma adaptação difícil. Chorou muito.

_Foi difícil, sim. E quantos não choram? Nesses primeiros tempos, quando ainda não há jogos ou escola, os miúdos sentem mais o desenraizamento, a falta dos amigos e da família. Enquanto não começa a competição e a escola temos de estar ali para eles. E estivemos sempre, nos bons e maus momentos. Como no dia em que a professora achou piada ao sotaque madeirense, riu e o Ronaldo não gostou. Reagiu e a coisa esteve muito feia, mas tudo se resolveu porque apesar de ter sido um miúdo com alguma rebeldia sempre acatou os conselhos.

Como era o dia a dia do Ronaldo?

_Era escola, de manhã e à tarde, e os treinos. Os afazeres dele não eram muito diferentes dos dos miúdos de hoje, na Academia. A base são os hábitos de trabalho, as equipas e as pessoas. Mas há uma alma que vem do passado e que nos alimenta.

Algum dia mereceu um castigo? E porquê?

_Nas vésperas de ir pela primeira vez à Madeira jogar pelo Sporting teve um desentendimento com uma das nossas professoras e tivemos de o desconvocar. Foi um castigo duro e ele senti-o muito mas a mãe deu-nos razão.

De tantos que já treinou ou descobriu, qual foi o jogador que mais o marcou?

_O Paulo [Futre] marcou-me muito. Eu identifico-me muito com os miúdos de bairro. Tenho muito orgulho nessas raízes. Não trocava a minha infância por nada deste mundo, tal a felicidade que vivi, mesmo sem grandes meios. No bairro somos solidários. O Futre é um ser humano fantástico. Já em jovem estava sempre disposto a defender e a ser solidário com os que mais precisavam. Nunca o vi voltar as costas a ninguém e ainda hoje é assim. Dormiu muitas vezes em minha casa, conheço-o muito bem. Ao longo destes anos encontrei pessoas extraordinárias em miúdos de 11 e 12 anos. Fico impressionado quando uma criança de 12 anos, cheia de talento, acarinhada na Academia, vinda de uma família com poucos recursos e consciente de que a espera um grande futuro nos diz «Eu quero estar perto dos meus pais. Não troco os pais por esta carreira.» Já tive um ou outro caso desses. Quando é assim, temos de encontrar uma solução que não separe a família.

Imagina Cristiano Ronaldo a dizer isso?

_Não. Os jogadores como o Ronaldo são obcecados pela carreira e têm um objetivo definido - a confirmação, na totalidade, do seu talento.

O Figo não tinha nem o perfil do Futre nem o do Ronaldo. Como o descreve?

_O Figo era um miúdo mais frio, com uma personalidade muito bem definida desde criança, pouco expansivo e muito observador. Nunca falava por falar. Nesse aspeto era muito calculista. Um homem na Cova da Piedade tinha-nos falado de um miúdo do «Pastilhas», um miúdo muito bom. Mas, antes de irmos falar com ele, veio ele treinar ao Sporting. Prestou provas com o professor Barnabé, a quem, ao fim de um tempo, interpelou desta forma: «Despache-se lá; fico ou não fico?» Isto define o Figo.

E qual foi o mais problemático?

_Problemático não diria, mas o Futre foi um miúdo hiperativo, dentro e fora do campo. Não podia estar quieto, era impressionante. Mas não foi um jogador-problema. Só para os adversários.

E o Quaresma?

_Chegou ao Sporting muito pequenino. O miúdo de bairro é mais irreverente e espontâneo, não está habituado a ficar calado. É preciso ter isso em conta quando se fala do Quaresma.

Lembra-se da primeira vez que viu o Nani?

_O Nani era um miúdo muito franzino que jogava no Real Massamá. A determinada altura foi treinar ao Sporting, mas por causa dos transportes e de uma vida familiar um pouco atribulada acabou por não ficar. Manteve-se no Massamá, as pessoas tratavam-no bem, tinha alimentação, carinho, tudo. Aos 16/17 anos foi fazer um jogo à Academia e os nossos técnicos fizeram um parecer no sentido do recrutamento. Mal o vi fiquei convencido de que tinha tudo para vir a ser um grande jogador.

E da primeira conversa com Moutinho?

_Quando o vi, miudinho e franzino, num torneio de seleções distritais na Pontinha, gostei muito. Falei com o pai, de quem fui treinador na seleção de iniciados de Lisboa, e iniciámos o processo. Mas foi uma luta muito renhida com o FC Porto.

Foi tutor de Simão. Porquê?

_O Simão chegou ao Sporting com 12 anos. Vinha de muito longe e a família pediu-me esse apoio. Aceitei o desafio e cumpri a minha obrigação mas não voltei a repetir. É uma responsabilidade imensa e chegou a determinada altura em que as incompatibilidades, face por um lado às minhas responsabilidades e, por outro, à gestão de uma carreira desportiva de jogador profissional, foram evidentes.

Como era ele?

_Um miúdo humilde, com ambição, que nunca criou problemas. Nunca tive de o chamar à atenção e se mais tarde existiram desvios não sei. Não estou por dentro.

O que primeiro o impressionou em Rui Patrício?

_O Rui tem uma capacidade notável de sacrifício. Com 11 anos, vinha duas vezes por semana de Leira a Lisboa, em autocarro para treinar em Pina Manique. E regressava no próprio dia. Amargou tanto aquele miúdo que ficou com a estaleca emocional que se lhe vê. Foi descoberto de uma maneira engraçada: ele, um esquerdino, entrou para substituir o guarda-redes que se lesionara. Foi em Pombal e o nosso observador estava lá.

Futre no FC Porto e no Benfica, Moutinho e Varela no FC Porto, Simão no Benfica. Destes três casos, qual deles lhe custou mais?

_Todos da mesma forma. Não gosto que não estejam no Sporting nem de os ver em clubes rivais.

Que relação mantém pela vida fora com estes miúdos, uns que descobriu, outros que treinou?

_Quem acompanha a sua integração e o tempo de formação no clube acredita que está a ajudar a formar um bom ser humano. Na minha relação com eles procurei sempre contribuir para que respeitassem a instituição que lhes deu tudo. Reconhecimento é o mínimo que se exige.

Continuam a visitá-lo?

_Eles têm a sua vida profissional e eu a minha. Aqui e ali quando nos encontramos a amizade e o respeito são evidentes.

Falam-se ao telefone, trocam mensagens? Com Ronaldo, por exemplo.

_Sim, há períodos em que troco mensagens semanais com ele. Lidamos com estes miúdos durante muitos anos e há sempre uma preocupação.

Como é que lhe chamam?

_Por Senhor Aurélio.

Nunca se zangou à séria com nenhum deles?

_Não. Como treinador, era obrigado a ter por vezes um discurso forte, ou a dar um murro na mesa. Fiz isso algumas vezes, mas na perspetiva de o grupo responder positivamente.

É um grande contador de anedotas. Fazia-os rir?

_Sim. Numa viagem longa, por vezes de 37 horas de autocarro, é fundamental alegrar o grupo. Recordo momentos de muito boa disposição.

E, como bom nascido em Alfama, gosta de cantar fado. Cantava-lhes fado?

_Viagens tão longas davam para tudo. Até para umas cantigas. Quem lida com jovens não pode ser cinzentão e eu sou bem-disposto por natureza.

Neste momento, há miúdos na Academia de que vamos ouvir falar muito?

_Há sim. Há alguns. Não podem aparecer Ronaldos todos os dias, mas desde que o clube tenha matéria-prima e a capacidade para, em conjunto com o jogador e sua estrutura familiar, transformar o jogador em grande jogador, nunca faltarão craques.

Atualmente, os miúdos que vivem na Academia também têm tempo para brincar e relaxar?

_Sim. Têm tempo porque lhes é permitido.

Qual é rotina deles?

_Têm uma vida perfeitamente normal, só não dormem em casa. Saem de manhã para a escola, almoçam lá e regressam todos à mesma hora (os horários estão coordenados). Depois vão lanchar e treinar. Têm o seu tempo de estudo e um gabinete psíquico-pedagógico sempre aberto, formado por quatro senhoras.

Também conhecidas por «as mães».

_Sim. Duas delas são psicólogas. Os miúdos nunca estão sós. E atenção, não há seguranças, só funcionários do clube.

A que horas é se deitam?

_Às onze.

E podem usar o telemóvel dentro dos quartos?

_Há alguns condicionalismos, tendo em conta o descanso, mas penso que sim.

Têm televisão nos quartos?

_Sim. Às onze horas desligam. As pessoas que ali estão têm de ter muito talento. Lidam com adolescentes a partir dos 13 anos.

As visitas à família e da família têm que periodicidade?

_Somos os primeiros a dizer-lhes que devem ir várias vezes a casa. Não há condicionalismo de espécie alguma. A família vem quando quer. É dentro desta liberdade que os miúdos se vão adaptando. A determinada altura os miúdos sentem que são atletas de alta competição e têm determinados objetivos e eles próprios gerem essa relação.

A Academia do Sporting é visitada por pessoas ligadas a vários clubes de todo o mundo que farão seguramente muitas perguntas. Quais são as mais frequentes?

_São sobretudo relativas à área técnica. Os processos de trabalho suscitam muita curiosidade.

Como ex-treinador de miúdos e jovens, e nessa condição venceu pelo Sporting muitos campeonatos nacionais em todos os escalões, que conselho dá a quem agora trabalha com a formação?

_Não há triunfos nem derrotas eternas, tudo começa de novo. Este é o meu princípio. No futebol, num mesmo jogo, somos capazes de fazer as melhores e as piores coisas. É preciso estar preparado para fazer as duas coisas. Por isso, mais do que ter treinadores a dizer «faz assim ou faz assado», os miúdos precisam de quem lhes diga «joguem».

A treinar ou a descobrir talentos, o que o faz mais feliz?

_Quando deixei de ser treinador custou-me muito. Mas, depois, entrei na prospeção e a paixão até redobrou.

Lamenta não ter ido mais longe como jogador ou treinador? Trabalhou como mecânico, mais tarde como diretor comercial de uma tipografia, nunca se profissionalizou no futebol.

_O meu pai vivia para o trabalho e deixou-nos essa herança. Quando tinha 15 fui aprendiz de mecânico e depois passei à oficina. Saía às quatro horas e ia para o Estádio de Alvalade. Já em 1963 o Sporting tinha um espaço para nós estudarmos. Das 18 às 20 treinava. Depois ia para a Escola Industrial Machado de Castro e tinha aulas das 21h00 às 23h00. Chegava a casa à meia-noite. Mas apesar de todo o esforço, como jogador seguramente não ia ter muito futuro. Era normal. Como treinador era uma questão de risco. Optei pela estabilidade da família.

Nunca foi convidado por outros clubes?

_Quando deixei de treinar na formação do Sporting fui convidado pelo FC Porto. Mas nunca senti motivação para viver só do futebol. Reconhecia que isso era uma aventura. No futebol profissional as pessoas passam por muita coisa.

E como especialista na área da prospeção, nunca lhe foi proposto trabalhar para um empresário de jogadores?

_Uma vez sim. Falaram comigo e eu disse que não. Não me enquadro nesse perfil.

Nunca se arrependeu de tantos anos de fidelidade ao Sporting?

_Não. É uma paixão.

Tem um neto de 2 anos e uma neta de 6. Têm jeito para o futebol?

_Noto que o Tomás tem vontade e gosta de jogar. A Carolina prefere ver comigo o Tom and Jerry. Somos capazes de estar os dois abraçados a ver aquilo. E eu depois começo a imitar as vozes e ela diz-me: «Avô, és mesmo louco.»

E continua a gostar de westerns?

_Sempre. Por uma questão de nostalgia estou a ver uma coleção do Bonanza. Nós não tínhamos televisão em casa e recordo o frenesim de comer à pressa para ir ver o Bonanza... Dizíamos «A seguir à tempestade bem a bonança e a seguir ao telejornal vem o Bonanza.» E lá íamos a correr para o café a ver se o homem nos deixava ficar em pé a ver aquilo.

E de ouvir a sobrinha, a Rita Redshoes (filha do irmão Carlos, ex-jogador do Sporting e treinador)?

_Sim, gosto muito de a ouvir. É um caso de paixão e talento. E tem a quem sair. A família, quer do lado da minha mãe quer do lado do meu pai, teve sempre uma relação próxima com a música. O meu pai tocava muito bem harmónica.

Perguntas de algibeira

Uma cena de um filme.

_Escolho uma de Rain Man - Encontro de Irmãos, um filme que me marcou muito. A cena em que finalmente os dois irmãos se abraçam depois de estarem afastados física e emocionalmente durante tanto tempo. Duas brilhantes interpretações de Tom Cruise e Dustin Hoffman.

Um livro.

_Palavra de Mulher, de Maria João Lopo de Carvalho.

Uma música para namorar.

_Feelings, de Morris Albert, uma voz pouco conhecida, mas que considero fantástica.

Um lema de vida.

_O tempo tudo resolve. Há sempre tempo para uma má decisão. Um problema grande ao amanhecer pode ser pequeno ao anoitecer. O tempo é o melhor conselheiro, pois há sempre tempo para uma má resposta, para uma atitude errada.

A última vez que chorou.

_Tenho de confessar que sou bastante emocional. E na homenagem que o SPC me fez recentemente emocionei-me e comovi-me ao olhar para a minha família ali presente a apoiar-me incondicionalmente.

O que ainda vê na TV?

_Informação, desporto e entrevistas sobre histórias de vida.

Quanto tempo gasta por dia a ler jornais?

_As duas primeiras horas do meu dia (entre as 08h00 e as 10h00).

Quanto tempo gasta por dia a ler e responder a e-mails?

_Metade do meu dia.

Contra a crise.

_Para falar de crise em Portugal teremos de a abordar no sentido global, da Europa. Acho que é um modelo falhado e que só a Europa no seu todo poderá resolver. Estou preocupado porque descontei cinquenta anos da minha vida e vejo um futuro próximo bem negro, eu que sou um otimista por natureza. Receio que a nossa democracia esteja em perigo e todos os dias conhecemos histórias que não pensava voltar a ver em vida. Vivi em ditadura e espero que não tenhamos de ouvir novamente na rua «Viva a liberdade» e ir à janela para ver quem vai preso.

Um lugar para passar a reforma.

_Lisboa, a minha cidade. Aquela que acolheu os meus pais e muitas gerações. É uma cidade com um cor única, solidária e que ainda tem muita coisa boa para oferecer. Como sempre, mais apreciada pelos estrangeiros.

 

Entrevista ao DN

2 comentários

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    GAG 16.10.2015

    Esta era de partilha obrigatória ;) O Senhor Aurélio vale milhões de lampiões
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